Amor e Poder: Jogos Invisíveis no Tabuleiro do Casal
Poucas coisas são tão idealizadas quanto o amor. E poucas são tão atravessadas por jogos de poder.
Enquanto os discursos românticos insistem em nos vender o amor como simetria pura — dois corações pulsando em harmonia —, a vida cotidiana dos casais revela algo mais complexo: relações amorosas são, também, arenas de negociação de poder. Quem cede mais? Quem decide o que será feito? Quem fala mais? Quem escuta menos? Quem pede desculpas primeiro — ou nunca?
Nem sempre essas questões são ditas. Muitas vezes, elas nem são percebidas. Mas estão lá, latentes. Em cada silêncio que pesa mais do que uma fala. Em cada “tanto faz” que significa “faz como eu quero”. Em cada conflito evitado para manter uma paz artificial. O amor, ao contrário do que se imagina, não anula o poder. Ele o transforma em linguagem simbólica — e o disfarça de carinho.
Michel Foucault ensinou que o poder não se exerce apenas de cima para baixo, nem está restrito às instituições. O poder circula, se infiltra nos corpos, nas rotinas, nos pequenos gestos. No casal, ele se manifesta em formas sutis: na maneira como um dos parceiros molda o outro, nas concessões feitas em nome da harmonia, nos medos de desagradar, nos silêncios estratégicos. Amar, muitas vezes, é também aprender a influenciar — e a se deixar influenciar.
John Gottman, que estudou por décadas as dinâmicas conjugais, mostrou que casais bem-sucedidos não são os que evitam conflito, mas os que sabem negociar diferenças de poder com respeito e flexibilidade. Os que não tratam a divergência como ameaça. Os que aceitam o outro como um sujeito autônomo, e não como uma extensão narcísica de si. O problema, portanto, não é haver poder na relação — mas quando ele se torna invisível, unilateral ou indiscutível.
Pierre Bourdieu chamou isso de dominação simbólica: quando um dos lados impõe sua visão de mundo sem precisar gritar, sem precisar obrigar. Ele naturaliza seus gostos, sua lógica, suas prioridades. E o outro, muitas vezes, adere sem perceber. Abre mão da própria voz em nome de uma “adaptação” que parece amorosa, mas que pode ser submissão camuflada.
bell hooks, pensadora crucial sobre amor e opressão, afirmou que não há amor verdadeiro onde há dominação. Para ela, o amor é um espaço de liberdade e expansão, não de controle. Mas para que essa liberdade exista, é preciso reconhecer os jogos de poder — inclusive os que se expressam por meio da linguagem do afeto: quem acolhe mais, quem educa mais, quem serve mais, quem se protege mais.
Essas dinâmicas se manifestam em decisões triviais: quem escolhe o restaurante? Quem sempre inicia a conversa difícil? Quem organiza a rotina da casa? Quem cede na vida sexual? E também nas decisões grandes: mudar de cidade, ter filhos, sustentar financeiramente o lar, assumir riscos. A assimetria está lá, mesmo quando disfarçada de “acordo”.
Mas o poder só se torna tóxico quando se recusa a ser visto. O que envenena a relação não é o fato de que há uma dança entre influência e autonomia — isso é inevitável —, mas quando um dos lados dança sozinho. Quando só um decide, mesmo quando o outro finge que escolheu. Quando só um se adapta, enquanto o outro se afirma.
Continue a ler com uma experiência gratuita de 7 dias
Subscreva a Manual da vida a dois para continuar a ler este post e obtenha 7 dias de acesso gratuito ao arquivo completo de posts.