Amor ou fusão simbiótica? Quando o vínculo apaga a diferença e devora o desejo
Nem todo "nós" é amor. Algumas relações se estruturam como apagamentos sofisticados do "eu" e do "tu". São vínculos que se confundem com profundidade, mas que funcionam como fusões simbióticas. Neles, os sujeitos perdem contorno, até não saberem mais quem deseja o quê. Relações assim transformam a diferença em ameaça, a individualidade em sinal de abandono, e o silêncio do outro em provocação.
A experiência parece de plenitude, mas a sensação de completude encobre uma ausência de espaço vital. O amor, quando vivido como sobreposição constante, não oferece abrigo. Ele aprisiona. Tudo é compartilhado. Tudo é antecipado. Tudo é comentado, explicado, interpretado. Não existe mais o entre. O outro se torna extensão. A diferença, em vez de convocar o desejo, é sentida como rachadura no pacto de simbiose.
Nessas relações, o espaço da intimidade desaparece. O que sobra é uma presença sufocante, disfarçada de cuidado. Pequenas decisões viram fontes de angústia. Um gesto autônomo, um pensamento não dito, um desejo solitário. Tudo parece transgressão. E qualquer movimento fora do script amoroso combinado gera um tipo de dor difícil de nomear. Um mal-estar que denuncia o desequilíbrio simbólico: a relação já não acolhe dois. Ela se sustenta no medo de não mais ser um só.
Winnicott escreveu que, para que o sujeito se constitua como tal, é necessário um espaço transicional. Um lugar onde a ilusão possa brincar sem ser sufocada. Onde o desejo possa surgir sem ser engolido pela expectativa do outro. A fusão simbiótica elimina esse espaço. Nada é apenas seu. Tudo precisa ser compartilhado. O desejo, diante dessa ausência de borda, morre por asfixia.
A cultura muitas vezes exalta esse modelo de vínculo. Frases como "somos um só" ou "só sou completo com você" se espalham como sinais de amor verdadeiro. Mas amar sem fronteiras é recusar o enigma do outro. É transformar a relação em espelho. O outro vira confirmação. Um reflexo que precisa coincidir com o que se espera. Quando não coincide, surge o ressentimento, a chantagem emocional, o medo do fim.
Na clínica, essa dinâmica aparece como um cansaço psíquico persistente. Sujeitos que não sabem mais se seus desejos são próprios ou herdados do vínculo. Gente que sente culpa por querer estar só. Que pede desculpas por pensar diferente. Que tenta se adequar a um ideal relacional que exige sacrifício constante de singularidade em nome da continuidade.
O amor verdadeiro só começa quando a fusão termina. Quando o outro pode ser diferente sem que isso destrua o laço. Quando o silêncio é aceito sem interpretação. Quando a ausência é suportável. E quando o desejo sobrevive mesmo diante do intervalo. Só nesse espaço simbólico o vínculo pode respirar.
Como reconhecer e desativar relações que operam por fusão simbiótica
Continue a ler com uma experiência gratuita de 7 dias
Subscreva a Manual da vida a dois para continuar a ler este post e obtenha 7 dias de acesso gratuito ao arquivo completo de posts.