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Arrependimento: O corte no tempo que nos obriga a nos rever
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Arrependimento: O corte no tempo que nos obriga a nos rever

Arrepender-se, então, não é se punir. É se responsabilizar. É cultivar memória sem prisão. Dor sem autoabandono. Lucidez sem paralisia.

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Torresmo
abr 12, 2025
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1. O arrependimento como afeto ontológico

O arrependimento é um dos afetos mais complexos da condição humana. Ao contrário das emoções de descarga, ele não cessa quando expresso. Pelo contrário: tende a crescer no silêncio. É um afeto que exige linguagem, reconstrução, elaboração — e, acima de tudo, responsabilidade. Trata-se de uma experiência de corte no tempo: uma consciência retroativa que invade o presente e cobra sentido do passado. Uma espécie de lucidez tardia, que revela quem fomos, quem não conseguimos ser — e quem já não conseguimos deixar de ser.

Mais do que uma emoção, o arrependimento é uma estrutura ética. É o instante em que o sujeito se torna, de forma dolorosa, reflexivo. Ele olha para trás e constata que poderia ter agido de outro modo. Mas não agiu. E esse “não agir” ganha densidade existencial: ele deixa de ser um detalhe e se torna uma marca. A história não contada se impõe sobre a história vivida.

2. A mecânica psíquica do arrependimento: entre o desejo e a castração

Na psicanálise, o arrependimento pode ser entendido como uma elaboração simbólica de perda e culpa. Freud, em O Eu e o Isso (1923), reconhece que há um tribunal interno — o supereu — que julga retroativamente os desejos realizados, os atos impulsivos, as omissões. O arrependimento, nesse sentido, é o sintoma de uma cisão: o sujeito se fragmenta entre o que fez e o que gostaria de ter feito.

Para Lacan, o arrependimento revela o confronto com a castração simbólica — isto é, com o fato de que o desejo nunca se realiza plenamente, e toda escolha implica perda. Ao decidir por um caminho, deixamos outros em suspensão. E essas vidas não vividas se tornam espectros: visitam o sujeito à noite, sussurram perguntas impossíveis, erguem-se como monumentos do “e se?”. Arrepender-se é, assim, escutar a voz daquilo que foi abandonado em nome do que foi vivido.

E isso é insuportável — porque aponta para a própria incompletude do eu. Não somos um só. Somos uma multiplicidade de eus possíveis, pulsando em disputa. E o arrependimento é o afeto que nos obriga a reconhecer que, em algum momento, traímos parte de nós mesmos.

3. Tempo, contrafactualidade e dor: a arquitetura do afeto

A estrutura do arrependimento é contrafactual: ele só existe na suposição de que outra realidade poderia ter acontecido. Como demonstram pesquisas em neurociência afetiva (Camille et al., 2004), o arrependimento ativa o córtex orbitofrontal, região associada à simulação de alternativas. O cérebro reconstrói cenários que não ocorreram, mas que, se tivessem ocorrido, teriam sido melhores.

O arrependimento, portanto, é uma dor projetada para trás. É o presente tentando redesenhar o passado com a régua do agora. E é exatamente essa tentativa — impossível e recorrente — que o torna tão torturante. Ele não é apenas luto: é luto com lucidez. Diferente da tristeza simples, o arrependimento vem carregado de julgamento, análise, crítica. Ele não lamenta apenas a perda, mas o agente da perda: o próprio sujeito.

É também uma dor silenciosa. Ao contrário da raiva, que explode, ou da alegria, que se compartilha, o arrependimento tem vergonha. Muitas vezes, não pode ser confessado, nem admitido. E é justamente o não-dito que o alimenta. Quanto mais se esconde, mais ele cresce.

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