Ensinar duas crianças a conversar: o trabalho secreto do amor
Não é falta de amor. Nem excesso de drama. Tampouco incompatibilidade de gênios. A razão pela qual tantos casais passam noites discutindo por mensagens não respondidas, tom de voz, silêncio na hora errada ou uma ligação que não veio — é outra. É porque, sem perceber, estamos tentando ensinar duas crianças feridas a se entenderem, usando corpos de adultos, vocabulário racional e argumentos que não tocam o ponto essencial: o medo.
O medo de ser abandonado. O medo de ser invadido. O medo de nunca bastar. O medo de sufocar. Toda briga recorrente é, em essência, a tentativa desesperada de proteger uma criança interna de se machucar outra vez. Mas como essa criança não tem linguagem própria, ela se expressa por meio do exagero, da acusação, da raiva. É por isso que os desentendimentos amorosos são tão repetitivos quanto universais. O script é o mesmo, do Brasil ao Japão: um se sente negligenciado; o outro, controlado. Um clama por presença; o outro implora por espaço.
E aí começamos a nos atacar. Porque é mais fácil parecer forte do que dizer: “quando você não liga, eu volto a ser aquela criança esquecida no portão da escola”. Porque é mais suportável gritar “você é sufocante” do que confessar: “toda vez que você me cobra, eu revivo a certeza de que nunca vou ser bom o bastante para ser amado”.
Winnicott nos ensinou que a agressividade, muitas vezes, é um pedido de amor que perdeu sua forma. E o que chamamos de crise conjugal é, na maioria das vezes, uma falha de tradução. Dois inconscientes tentando comunicar seu pânico com o vocabulário limitado da autoproteção. Lacan diria que o amor é aquilo que dá ao outro o que ele não tem, a partir do que nos falta. Amar, nesse registro, é sustentar a presença mesmo quando não se compreende — é suportar o que o outro ainda não sabe nomear.
Toda relação duradoura exige alfabetização afetiva. E esse aprendizado começa quando desistimos de vencer. De ter razão. De sermos os mais magoados. Começa quando conseguimos dizer, sem ironia: “eu te ataco porque sinto que você pode ir embora a qualquer momento”. Ou: “eu me calo porque aprendi que qualquer reação pode me envergonhar”.
A verdadeira intimidade não se constrói com afinidade, mas com escuta. Escutar, aqui, não é apenas deixar o outro falar, mas ser capaz de ouvir o que ele mesmo não sabe que está dizendo. E isso exige uma delicadeza de outro tipo. A que transforma o argumento em cuidado, a acusação em biografia, a briga em possibilidade.
A maioria das relações não morre de desamor, mas de ruído. De ruído entre o que se sente e o que se diz. Entre o que se espera e o que se pode oferecer. O que parece “birra”, muitas vezes, é memória. O que parece “reclamação”, frequentemente, é um pedido de colo mal formulado.
E se há alguma esperança para essas crianças brigando dentro de adultos cansados, ela não está no divã do terapeuta, nem na promessa de viagens, nem no número de vezes que se faz sexo por semana. Ela está na cena quase ridícula — e profundamente humana — de um deles dizer: “me ajuda a te entender melhor. Eu tô cansado de gritar”.
Talvez seja isso que chame de amor quem aprendeu, tarde demais, que crescer não basta para que a dor de infância desapareça. Às vezes, só amar também não. É preciso reaprender a conversar. Como se cada casal fosse uma pequena escola. E cada briga, uma lição não aprendida que volta a ser cobrada — até que um dos dois tenha coragem de explicar o que, desde sempre, só sabia sentir.