Nem toda prisão tem grades. Algumas têm gestos afetuosos. Horários combinados. Toques frequentes. Mensagens constantes. Olhares que dizem “só quero seu bem” enquanto limitam sua respiração. O nome disso não é zelo. É vigilância afetiva disfarçada de amor.
Há vínculos que confundem cuidado com domínio. Relações que se sustentam não na liberdade do outro, mas na manutenção de sua dependência. Vínculos em que um dos lados, muitas vezes sem perceber, precisa que o outro continue frágil para que o amor tenha função. Relações que só sobrevivem enquanto alguém estiver em posição de ser salvo — e o outro, incumbido de salvar.
À primeira vista, são relações belas, protetoras, até admiráveis. Pessoas que “fazem tudo uma pela outra”, que “nunca se largam”, que “passam por tudo juntas”. Mas, ao olhar com mais atenção, nota-se que há uma troca silenciosa ali: eu cuido de você, desde que você continue precisando. E você me ama, desde que eu siga te salvando. A simbiose é tão intensa que os limites desaparecem — e junto deles, o desejo, a autonomia, o risco.
Winnicott já nos advertia: todo cuidado excessivo é, em alguma medida, uma tentativa de evitar o amadurecimento do outro. Quando o ambiente não permite a frustração, ele não gera segurança — gera paralisia. E muitos dos vínculos que se dizem “amor incondicional” são, na verdade, armadilhas sofisticadas de manutenção do poder. Porque, no fundo, não se cuida do outro como ele é — mas como se gostaria que ele fosse: pequeno, necessitado, eternamente à mercê do nosso afeto.
A clínica confirma: há sujeitos que adoecem quando o outro melhora. Que se desestabilizam quando o parceiro começa a ir bem. Que sabotam sutilmente a autonomia alheia para preservar o lugar simbólico que ocupam na relação. Mães que não suportam ver os filhos crescerem. Parceiros que se sentem traídos pela felicidade do outro. Amigos que só se sentem próximos quando a vida do outro desmorona. O nome disso não é amor — é pacto narcisista de dominação disfarçada.
Mas a coisa é mais sutil — e mais trágica. Porque, frequentemente, quem cuida demais acredita genuinamente estar fazendo o bem. Vive para o outro. Se anula em nome do vínculo. E sente, com angústia, que o amor está sendo ameaçado quando o outro se fortalece. É como se a melhora do outro pusesse em risco a identidade de quem cuida. Afinal, se eu deixo de ser necessário, quem sou eu?
É aqui que entra a questão estrutural: o sujeito que só se reconhece na função de cuidador está, na verdade, respondendo a um trauma mais antigo. Frequentemente, ele foi a criança que teve que cuidar dos pais. Que cresceu rápido demais. Que aprendeu, cedo, que só teria valor se fosse útil. Não sabe ser amado por quem é — apenas por aquilo que oferece. E, por isso, transforma o cuidado em estratégia de vínculo. E o vínculo, em território de poder.
No fundo, o que se busca é permanência. E manter o outro dependente é, paradoxalmente, uma forma eficaz de evitar a perda. Se o outro precisa de mim, ele não vai embora. Se depende da minha presença, da minha aprovação, do meu apoio, então ele nunca me abandona. Mas isso tem um preço alto: o amor que deveria sustentar a vida, passa a limitar o crescimento. E o vínculo, que deveria ser espaço de liberdade compartilhada, vira um cárcere de afeto.
Essa é uma das formas mais perversas de repetição inconsciente. O amor doentio que se veste de cuidado. A simbiose que anula. A doação que, no fundo, exige retorno. É o cuidado que sufoca, porque se assusta com o outro inteiro. Com o outro que não precisa. Com o outro que segue. E é nesse ponto que surge a pergunta ética: a quem esse amor está servindo? Ao outro — ou à própria fantasia de ser indispensável?
Como identificar e transformar vínculos baseados em cuidado-controle?
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