Manual da vida a dois

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Quando ser necessário adoece: o falso amor que nasce da dependência emocional alheia

Quando ser necessário adoece: o falso amor que nasce da dependência emocional alheia

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Torresmo
mai 31, 2025
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Quando ser necessário adoece: o falso amor que nasce da dependência emocional alheia
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Há vínculos que se formam não por afinidade, mas por necessidade. Relações em que o afeto não floresce — implora. Onde amar é uma forma de continuar sendo útil. Nessas relações, o amor não é escolha: é função. Ser necessário se torna o modo de garantir lugar no mundo. E ser amado, uma recompensa pela performance do cuidado.

Esses laços se disfarçam bem. Dizemos que somos generosos, bons ouvintes, afetivamente disponíveis. Que temos um talento especial para lidar com pessoas “difíceis”, “intensas”, “feridas”. Chamamos de entrega o que muitas vezes é compulsão. Mas, por trás da escuta, da paciência, da presença, esconde-se uma demanda: que o outro nunca nos ultrapasse. Que siga precisando de nós. Que permaneça dependente, frágil, admirado pela nossa estabilidade. O nome disso não é amor. É refém simbólico.


Na clínica, isso aparece como o sujeito que atrai sempre o mesmo tipo de parceiro: alguém quebrado, perdido, com dificuldades em se vincular. Ao início, esse vínculo parece promissor. O paciente sente-se especial por ser aquele que “alguém finalmente escutou”. Mas aos poucos, a energia vital escoa. O cuidador emocional começa a definhar, mas não consegue sair — afinal, sua autoestima depende de ser necessário.

Freud localiza esse fenômeno nas formações narcísicas do eu. O sujeito que se vê como “salvador” está, na verdade, reeditando uma cena primitiva: a fantasia de ser indispensável à sobrevivência do outro. Muitas vezes, essa posição nasce na infância, em lares onde a criança foi transformada em regulador emocional dos pais. Crescer sob o pacto de que o seu bem-estar depende da estabilidade emocional do outro gera uma forma de desejo viciada na função.

Quando adulto, esse sujeito não se apaixona pelo outro em si, mas pela necessidade que o outro projeta. Deseja ser amado não como escolha, mas como única saída. Assim, o vínculo passa a ser estruturado por dependência mútua: de um lado, quem precisa ser cuidado. Do outro, quem só sabe amar cuidando. E ambos se sufocam.


Mas o verdadeiro abismo surge quando o outro começa a melhorar. Quando começa a não precisar mais tanto. Quando ganha autonomia, desejo próprio, projeto de vida que não depende exclusivamente de quem cuida. É nesse ponto que o cuidador entra em crise. A relação, que antes parecia amorosa, revela-se tóxica: a cura do outro é sentida como ameaça. Porque, se o outro estiver bem, quem você será?

Essa é a tragédia silenciosa dos vínculos codependentes. O que parecia empatia, na verdade, era medo de abandono. O que parecia entrega, era medo de não ser necessário. E o que parecia amor, era só uma repetição inconsciente da velha fantasia infantil: só serei amado se for essencial.


Aqui é onde o ensaio deveria pausar. Onde o leitor percebe que a lucidez dói mais do que o drama. E se o que você chama de amor for, na verdade, medo de ser descartado? E se a sua entrega for apenas a armadura que te protege da sua própria vulnerabilidade? E se sua presença constante for, paradoxalmente, o que impede o outro de crescer?


O mais difícil nesses casos é reconhecer que a retirada é mais ética do que a permanência. Porque a permanência, nesses vínculos, deixa de ser presença e vira cerco. O amor só é amor quando o outro pode ir embora. Quando a liberdade é real. Quando não há chantagem emocional mascarada de cuidado. Mas para quem estruturou sua identidade sobre a ideia de que só é digno quando é necessário, abrir mão disso equivale a desaparecer.

A filosofia existencialista — Kierkegaard, sobretudo — nos lembra que amar é suportar o abandono do ideal. Amar é renunciar à ilusão de completude. É permitir que o outro exista para além da sua utilidade emocional. E, por consequência, aceitar que talvez você não seja necessário. Essa lucidez é brutal. Mas é também o único ponto possível de reinvenção do desejo. Porque só quando se perde o lugar simbólico de indispensável é que o sujeito pode, enfim, desejar sem medo de ser.


Como romper com a necessidade de ser necessário e construir vínculos onde haja desejo e não função:

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