Manual da vida a dois

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RAIVA: o afeto que queima por dentro quando não encontra tradução

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Talvez a grande pergunta não seja “como controlar minha raiva?”, mas “do que minha raiva está tentando me defender?”. O que ela está nomeando que eu insisto em silenciar?

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Torresmo
abr 12, 2025
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RAIVA: o afeto que queima por dentro quando não encontra tradução
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I. A raiva como afeto maldito

Entre todos os afetos, talvez nenhum carregue um estigma tão forte quanto a raiva. Chorar é permitido. Temer é humano. Estar triste comove. Mas a raiva — especialmente em certos corpos — é logo silenciada, reprimida, patologizada. O sujeito com raiva é percebido como perigoso, descontrolado, irracional. A sociedade não acolhe a raiva: ela a pune. Mas a raiva não desaparece por isso — ela recua. E quando recua, adoece o corpo.

Freud, em O Mal-Estar na Civilização, descreveu o preço psíquico da renúncia pulsional como uma fonte de sofrimento humano: para viver em sociedade, precisamos recalcar impulsos. Mas quando o recalque é excessivo, os afetos não desaparecem — eles se deslocam, se somatizam, se tornam sintomas. A raiva, quando não pode ser expressa, vira gastrite, vira insônia, vira apatia, vira culpa.

A raiva é o afeto que surge quando algo foi atravessado sem consentimento. Quando o sujeito foi interrompido em sua dignidade. Quando o desejo foi desautorizado. Quando a palavra não foi escutada. Quando o limite foi rompido. É a resposta psíquica diante da injustiça — e, nesse sentido, ela é uma forma legítima de autopreservação.

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II. Raiva e vergonha: a armadilha da decência emocional

Muitos de nós aprendemos desde cedo a sentir vergonha da própria raiva. Na infância, quando chorávamos com raiva, ouvíamos: “Não é para tanto”, “Você está exagerando”, “Fica feio fazer escândalo”. Aos poucos, o afeto era condicionado: só podia ser expresso de modo aceitável, controlado, domesticado.

Winnicott nos ensinou que, para uma criança se tornar um sujeito saudável, ela precisa viver a “experiência de destrutividade” — um momento simbólico em que pode se indignar, odiar, gritar, bater… e mesmo assim ser acolhida. Sem essa experiência, o sujeito aprende que só pode ser amado se for bom, calmo, gentil. E então a raiva passa a viver escondida, como um corpo que nunca pôde crescer.

Na vida adulta, essa repressão se manifesta de modo cínico ou passivo-agressivo: o sujeito que diz “está tudo bem” enquanto implode por dentro; que sorri quando queria gritar; que engole a indignação até ela se transformar em pedra no estômago. A raiva mal metabolizada se acumula como uma carga elétrica que ou explode ou implode.

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III. A raiva como afeto político e linguagem do desejo traído

Raiva não é apenas um sintoma — é uma linguagem. Um modo de dizer: “Aqui, algo foi demais.” A raiva é o avesso da indiferença. Só sente raiva quem ainda se importa. Ela é o afeto do limite rompido, do desejo frustrado, da escuta negada. É o grito ético diante do que não deveria ter acontecido.

Por isso, a raiva também é um afeto político. Especialmente em corpos que foram historicamente ensinados a não sentir: mulheres, pessoas racializadas, pessoas LGBTQIA+, todas elas carregam a memória coletiva da raiva silenciada. Quando esses corpos sentem raiva, não é só individual: é histórico. É o grito de gerações que aprenderam a se calar para sobreviver.

Lacan dizia que “o ódio é uma das três paixões do ser” (ao lado do amor e da ignorância), e que ele é estrutural — mas só se sustenta porque existe um outro que fere, que barra, que desorganiza. O sujeito com raiva está tentando restaurar a ordem do simbólico, está buscando justiça interna. E ignorar essa raiva é condenar o desejo à mutilação.

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