A promessa da vida a dois carrega, quase sempre, uma fantasia não verbalizada: a de que, se houver amor, haverá compreensão. Que o sentimento seja suficiente para que o outro saiba o que se passa, o que nos fere, o que queremos. Que ele “deveria saber”. Mas essa expectativa — de que o amor inclua uma espécie de telepatia moral — é uma das armadilhas mais profundas nos relacionamentos. Porque o amor, por si só, não garante compreensão. Nem escuta. Nem linguagem comum. Muito menos tradução exata entre o que um sente e o que o outro entende.
A comunicação entre casais, ao contrário do que supõe a lógica da transparência romântica, é opaca, filtrada, contaminada por ruídos afetivos, traumas antigos e interpretações inconscientes. Como diz Lacan, “toda comunicação está fadada ao mal-entendido” — e isso vale em especial para os vínculos amorosos, onde o que está em jogo não é apenas a troca de informação, mas o reconhecimento, o desejo, a reparação simbólica de carências ancestrais.
O que um diz é apenas parte da equação. O que o outro escuta é uma tradução inevitavelmente imperfeita — atravessada por medos, esperanças e hábitos de interpretação formados desde a infância. Um “você não me ouve” pode significar, de fato, “você não me valida”, “você não me deseja”, ou mesmo “você me lembra alguém que me feriu”. A palavra falada é só o invólucro. O conteúdo, muitas vezes, é outro — e não raro, inconsciente.
Freud já alertava que o sujeito não é senhor nem mesmo do que diz. E é por isso que tantas conversas entre casais terminam em silêncio. Não por falta de vocabulário, mas por excesso de implicações psíquicas. Numa simples troca de opiniões pode estar em jogo a fantasia de ser rejeitado, abandonado ou anulado. O tom, a pausa, o desvio de olhar — tudo carrega uma carga simbólica que, para o outro, pode soar como ameaça ou desamor.
O problema se agrava quando o casal acredita que “conversar” resolve tudo. Não é raro que o excesso de diálogo produza apenas mais ruído, mais tensão, mais frustração. Porque falar, na relação, não é suficiente: é preciso suportar o que se escuta, conter a própria defesa, abrir mão de ter razão, sustentar o não-saber. Ou seja: escutar de verdade é uma forma de exposição — e, portanto, de risco.
E há ainda um outro obstáculo: a ilusão da linguagem comum. Casais dizem as mesmas palavras, mas vivem significados diferentes. “Amor”, para um, pode ser cuidar em silêncio. Para o outro, dizer “eu te amo” todos os dias. “Respeito”, para um, é não invadir. Para o outro, é participar. “Liberdade”, para um, é espaço. Para o outro, é autonomia sem solidão. E assim se acumulam mágoas, cada uma construída sobre a certeza de que o outro “sabia o que estava fazendo”.
Mas não sabia.
Sabia o que ele entendia. Agia com base na própria gramática afetiva, não na do outro. E é isso que torna os desencontros conjugais tão frequentes — e tão dolorosos.
Não há solução plena para esse abismo, mas há travessias possíveis. O que um casal pode aprender não é a falar melhor, mas a ouvir com menos pressa. A desconfiar da própria interpretação. A fazer perguntas em vez de acusações. A demorar mais na escuta do que na resposta. A saber que nenhum pedido de afeto é pequeno demais — e nenhum silêncio é vazio à toa.
O verdadeiro pacto amoroso não é entre quem se entende sem esforço. Mas entre quem topa traduzir, retraduzir, revisar o dicionário comum quantas vezes for preciso. Entre quem aceita que amar é também suportar o mal-entendido — e ainda assim insistir na presença.
Amar não é dizer tudo. É seguir tentando dizer — mesmo sabendo que nunca será tudo. É aceitar que o outro não nos decodifica naturalmente, e que viver a dois é, sempre, também um esforço de tradução simbólica. Amar, nesse sentido, é repetir o gesto inaugural da linguagem: tentar significar o indizível — e esperar que o outro queira escutar.